O que institui as fronteiras?
Conforme o dicionário, "fronteira" designa uma divisão, uma demarcação abrupta e evidente, uma delimitação, uma separação. Separa-se e define-se o que está dentro do que está fora de um espaço. Desta forma a ideia de "fronteira” está associada a ideias de pertencimento e exclusão, de identidades, de propriedade, de estrangeiro, de invasões e migrações, etc. Não é apenas um marcador simbólico; é também instrumento que, por uma lado subjetiva e protege, por outro lado, silencia e mata.
Durante os últimos anos, e especialmente durante a pandemia, algumas das concepções de fronteira se tornaram mais presentes e foram intensamente friccionadas. O que parecia um direito inalienável, como o ‘ir e vir’ individual (será uma utopia?), mostrou-se parte de um movimento que acontece numa esfera coletiva, controlado e monitorado, ao menos nos centros urbanos. Enquanto uma parte pôde manter-se em casa e fazer quarentena, com trabalhos remotos possibilitados pelas tecnologias; outra parte teve que enfrentar situações adversas para continuar o trabalho; muitos sofreram com a falta de acesso e perdas de vários tipos. A pandemia nos mostrou (e mostra) fronteiras - de forma realçada e intensificada - definidas por desigualdades de acesso e privilégio.
Como nos posicionar diante das/nas fronteiras?
Nos interessa refletir sobre os processos artísticos como meio, que é atravessado pelas experiências de limites e confins, assim como pela experimentação de gestos nos quais a parte empírica encadena uma sequência de ações, de acontecimentos, acasos, acidentes, que seguem criando um repertório próprio. Esse repertório, por sua vez, aponta para instrumentos e maneiras de lidar com as linhas e limites vividos. Um saber que se dá em ação.
Sobre a importância de pensarmos a estética e a produção de imagens das/nas fronteiras nós escutamos a voz de Marcela Bonfim (1):
Também ouvimos a fala de Renata Marquez (2):
Assim, em diálogo com as vozes de nossos interlocutores presenciais e mentais, evidenciamos a importância das práticas artísticas que espacializam fronteiras, que problematizam a questão da “obra de arte como objeto de contemplação estética” e criam ficções, que se instalam como diferença em oposição a um mundo indiferente.
Quais são as fronteiras que queremos desafiar?
Sigamos com a voz do filósofo Achille Mbembe, que evidencia, justamente, as fronteiras e os limites como uma questão central, epistemológica e prática:
Conhecer o mundo - o que ele é, as relações entre as suas diversas partes, a extensão dos seus recursos e a quem pertencem, como habitá-lo, o que o move e o ameaça, para onde vai, as suas fronteiras e limites, o seu possível fim - tem-nos ocupado desde o momento em que o ser humano de carne, osso e espírito surgiu sob o signo do Negro, isto é, do homem-mercadoria, do homem-metal e do homem-moeda. No fundo, tem sido a nossa questão. E continuará a ser, pelo menos enquanto dizer mundo for o mesmo que dizer Humanidade, e vice-versa.
Na verdade, apenas existe um mundo. Ele é um Todo composto por mil partes. De todo o mundo. De todos os mundos. (3)
E experienciando o mundo, em diálogo com Jacques Rancière, pensamos a arte não como prática de representar o real, mas como exercício para (re)construir nossa relação com o outro/o mundo, deslocando as linhas de separação entre o real e a ficção, embaralhando as linhas que configuram o campo consensual (4). Escutamos uma fala que aproxima estética e política, o evidenciando o papel da ficção como uma instância que intervém no real:
A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem “natural” que destina aos indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. (5)
Assim, imagens e práticas podem ser pensadas (re)criações do mundo ou como ficções que relacionam-se às dinâmicas de poder e podem denunciar/dar visibilidade a conflitos geopolíticos em diferentes níveis e dimensões.
Um cartografia de f(r)icções que desafia as fronteiras
Os processos artísticos evidenciaram questões que se revelam desde em um nível macro, como violências socioambientais, a um nível micro, como processos bioquímicos do metabolismo humano e os limites da vida/arte e da interação entre ambiente/meios artísticos e exposição/mediação.
A cartografia de f(r)icções do grupo inclui pensar relações de poder no tecido urbano, com Augusto Leal, que nos convida a “des-pensar a cidade”; uma denúncia à contaminação do rio com chumbo, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, com Dayane Ribeiro; nos oferece um banquete feito de restos, com Zahra Alencar; nos torna cúmplices ao ouvir as vozes femininas que denunciam violências, com Potira; nos colocam frente a situações que deslocam a simbologia da bandeira, com Franz Ella; e que posicionam (anti)monumentos em sítios de memória, com Marlon de Paula, para que histórias (literalmente soterradas) sejam vistas. Também nos colocam em diálogo com os invisíveis, com o cultivo do silêncio, em obra de JeisiEkê de Lundu; e a busca da (in)visibilidade, com Padmateo. Por fim, o coletivo Furtacor, nos (re)coloca no processo, retomando algumas das perguntas iniciais que orientaram a residência. Assim, do fim, voltamos ao começo: Como nos posicionar diante das/nas fronteiras?
Referências
(1) BONFIM, Marcela. In BONFIM, Marcela (org.). Meu meio, é o meio ambiente: V Festival Fotografia em Tempo e Afeto. Porto Velho, 2022. p. 148. https://www.fotografiaemtempoeafeto.com/
(2) MARQUEZ, Renata. Arte como prática de fronteira. In: BETHÔNICO, Mabe (Org.). Provisões: uma conferência visual. Belo Horizonte: ICC, 2013. p.3. http://www.geografiaportatil.org/index.php/projects/arte-como-pratica-de-fronteira/
(3) MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014. p.300.
(4) RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 75.
(5) RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 59-60.



SEXTA
17h - 20h









Fila/ Carreto/ Carro de som
Augusto Leal











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